Uma poética de
fragmentos[1] e
encontro com a imagem ancestral.
(12º Salão
“Unama de Pequenos Formatos”. Galeria Graça
Landeira, Unama, 2006/ “Gráfica Contemporânea”, Galeria Mabeu, Centro Cultural Brasil Estados
Unidos, 2006)
Sendo dados:
- 1. Gravura em Metal (água forte, água tinta,ponta seca)
- 2. Álbum “Duo”[2]
- 3. Fotografia
- 4. Vídeo
- 5. Cartografia da ideia
O primeiro fragmento: a cadeira de rodas.
A ideia surge no elo entre fragmento e
memória.
Durante o
período da graduação, minha avó, Raimunda de Souza Moraes, sofreu um AVC
(Acidente Vascular Cerebral), o que resultou em sua paralisia e ela passou a
utilizar a cadeira de roda como um instrumento que auxiliava sua locomoção.
Durante o período em que esteve fora da minha casa em função de uma viagem,
observei a sua cadeira vazia e lembrei dela. Percebi que o objeto era um
fragmento afetivo, sendo um vínculo entre eu e minha avó. Então me apropriei
desta cadeira de rodas como ponto de partida para uma serie de ações.
O segundo fragmento: a representação
A
gravura como o veiculo do conceito.
A cadeira era o primeiro artefato que recolhi como
veículo simbólico e que me conectou a matriarca de minha família. A cadeira de
rodas é, ao mesmo tempo, um veículo e símbolo do AVC, e sua representação
deveria corresponder a este trágico acontecimento. O veículo de representação
deste objeto deveria ser tão fria como uma máquina. Era necessária uma técnica
que pudesse representar este aspecto e que representasse uma interação entre o
universo mecânico e o humano. A gravura em metal seria o melhor veículo desta
idéia e os desdobramentos desta ação estariam ligados ao conceito da própria
gravura, o qual explico a seguir.
Durante a construção de uma gravura em metal, é
necessário que se retire varias “provas de estado” (prova de estado em que se
encontra a matriz naquele exato instante) para que a partir da análise destas
provas, se possa prosseguir na construção de uma gravura e chegar ao resultado
final. Outro aspecto interessante da gravura em metal é que suas técnicas
envolvem processos diretos e indiretos. Sendo diretos aqueles em que se age
(grava) diretamente sobre a matriz; e indiretos quando a gravação da matriz é
submetida a procedimentos químicos com ácidos (mordente) ou com o auxílio de
ferramentas específicas. Na impressão da gravura em metal é obrigatório o uso
de uma prensa mecânica para imprimir a gravura, possibilitando assim o
resultado final da estampa. Ou seja, é um procedimento humano e maquiínico.
Passo a me valer deste conceito da gravura como mais um dos aspetos que
constituem a idéia de fragmento.
A gravura acontece em etapas, que vão do desenho,
passando pela gravação e chegam guà impressão. A estampa final é resultado da
união desses procedimentos. Portanto, concluo que este procedimento de ações
por etapa foi introduzido à construção intelectual de “Duo” e, como o próprio
nome sugere, é um jogo entre partes, é um dueto entre matriz e estampa, idéia e
execução do objeto, partes e todo.
O terceiro fragmento
Fragmentos de uma “matriz-arca”.
O caderno Duo foi exposto ao lado da gravura, no XII
Salão Unama de Pequenos Formatos, formando um duplo visual referente a matriz
que gerou minha família, minha avó. Este caderno é composto por fragmentos que
foram recolhidos ao longo dos anos por minha avó, tais como imagens de santos,
documentos, fotos e outros objetos, como o receituário de sua primeira consulta
após o AVC; eletrocardiograma retirado enquanto ela estava em coma no hospital;
documentos do INAMPS (atual SUS); e desenhos como o de minha mãe em desespero
no hospital; borboletas; e um retrato-falado de meu avô, Francisco Moraes, que
não cheguei a conhecer pessoalmente, feito a partir de descrição de minha
própria avó. Foram produzidos também fotolitos de uma carteira de identificação
dela.
Outro aspecto é que este caderno deveria evidenciar
este jogo criativo que houve entre mim e minha avó para sua execução e deveria
ser parte de uma ação de intimidade e reconhecimento de minhas origens. Por
exemplo: ao colocar um documento do INAMPS datado de 1982, colocava ali um
documento que tinha sua origem no ano em que nasci.
O caderno cria signos cíclicos da máquina que é a
grande contagem do tempo. O gesto que compõe a criação do caderno tem sua
origem na relação afetiva e simbólica gerada com o contato com a matriz de
minha família, que recebeu toda sua herança genética. Os gestos são compostos a
partir de um vínculo afetivo. Assim como na gravura é a partir da matriz que se
geram as estampas, é a partir da Matriarca que todos, de certa foram, foram
gerados. Os fragmentos são resíduos matéricos de experiências vividas ao longo
dos anos.
Imagem estática: fragmento de um registro
do tempo
Fotografias e vídeo “Matre”
A característica mais importante desse conjunto de
fotografias é que elas surgiram como um registro da ação da fotógrafa Juliana
Rose, uma visão monocular e estática do objeto e ao mesmo tempo transforma o
caderno “Duo” em uma gravura pois, através de uma matriz foto-sensível, eu
posso multiplicar este caderno, transformando-o em uma matriz digital. Estas
características específicas da fotografia me conduziram a experimentação da
imagem e movimento, que resultaria no vídeo Matre, que registra uma ação, que é
o próprio movimento que fazemos ao virar as páginas do caderno.
Além do movimento, poderia acrescentar o som. O vídeo é
produzido em take contínuo e em
gravação direta, sem recursos de edição, de maneira caseira. Seu título era
“Matre”, que significa “mãe” e ao mesmo tempo “matriz”. A avó é mais uma vez
personificada como metáfora de matriz/matriarca. Caracterizar, evidenciar o
caráter de uma pessoa e distinguir, dar ao ator a aparência de personagem que
ele representará em cena (característica-caractere). Para Bachelard, “às vezes,
porém, as transações entre o pequeno e o grande multiplicam-se, repercutem-se.
Quando uma imagem familiar cresce até atingir as dimensões do céu, somos
subitamente tocados pela sensação de que, correlativamente, os objetos
familiares convertem-se na miniatura de um mundo. O macrocosmo e o microcosmo
são relativos” (BACHELARD, 2003, p. 176).
Como um grande conjunto de idéias fragmentadas, “Duo”
parte de um raciocínio que envolve tanto os pensamentos de Duchamp como alguns
princípios estabelecidos por Beuys. A intenção foi construir uma obra e uma
trajetória que levasse à criação de objetos, partindo dos princípios de ambos
os artistas.
Tudo começa com o ready-made,
isto é, a apropriação de uma cadeira de rodas pertencente à minha avó,
representada de forma fria e simbólica, como uma máquina metafórica. O gesto é
o encontro, um vínculo entre o objeto e a imagem ancestral, e a descoberta de
uma ancestralidade é o rito que conduz o ato criativo: são os processos
xamânicos de descoberta e cura propostos por Beuys. “Duo” é uma obra inacabada.
Fotografias de Juliana Rose.